Abuela Grillo

por Liliana de la Quintana, enviado especialmente para o comKids Green
Festival Kolibri / produtora Nicobis http://www.festivalkolibri.org

Nunca antes na história da humanidade as novas gerações se encontraram tão intimamente ligadas ao seu futuro. E cada dia conta a favor ou contra a construção de uma vida digna para todos, em todos os sentidos.

A Bolívia lançou uma proposta altamente questionadora à sociedade: como conseguir viver bem (Vivir bien, em espanhol)? Isso se inicia com a valorização de cada um dos elementos que constitui o ser humano, como sua identidade, sua cultura, idioma, vestimenta, história, música, comida, sua própria organização familiar, social, recursos naturais em uma relação equilibrada com a natureza e com a vida.

Sob essa proposta, reuniu-se uma série de livros sobre mitologia indígena boliviana para meninos e meninas, buscando recuperar seres, histórias, identidades, tempos e concepções diferentes, mas bastante próprias dos povos indígenas, tão próximos quanto pouco conhecidos e valorizados em nossas sociedades.

Um dos livros se dedica à mitologia dos Ayoreo, povo indígena que nos dias de hoje vive na Bolívia e no Paraguai, em condições de vulnerabilidade. A simplicidade de sua vida contrasta com a complexa mitologia que desenvolveram, em que encontramos um personagem cativante, a Abuela Grillo (“Avó Grilo”).

Still da animação
Still da animação

Os Ayoreo dizem que, nos tempos antigos, quando os seres humanos tinham algo dos animais, e estes algo dos humanos, eles davam o nome de Abuela Grillo ou Direjná ao grande grilo, que era o dono das águas e que não podia com o calor.

Certa vez, a avó fez chover tanto sobre o povoado Ayoreo que ele se inundou. Então seus habitantes pediram à Abuela que abandonasse o lugar. Com muita tristeza, ela deixou a comunidade e seguiu caminhando, sem destino. Por onde passava, deixava o seu rastro e os rios se formavam. Quando se sentava para descansar, se formavam as lagoas.

Enquanto isso, os Ayoreo começaram a padecer pela grande seca e pela falta de alimentos. A água era vital nas suas vidas e eles chegaram à conclusão de que tinha sido um erro ter expulsado a Abuela Grillo da comunidade. Por isso decidiram ir buscá-la seguindo seu rastro. Caminharam muito, e, por fim, encontraram-na no centro de um pântano, onde se refrescava.

Seus netos, os Ayoreo, se desculparam diante da avó, e lhe pediram que voltasse à comunidade. Ela não resistiu ao convite e voltou junto com eles, mas algumas coisas já não eram as mesmas, como a presença do fogo e o uso deste no cozimento dos alimentos. Esse estranho calor a afetava muito, a ponto de torná-la mais grilo. Então decidiu buscar outro lugar para viver e assim foi visitar os oito céus que os Ayoreo têm. Nessa aventura, encontrou-se com os seres que habitam cada céu e, vendo as oportunidades que havia em cada lugar, decidiu morar no quarto céu, onde havia muita umidade. Lá ela se sentia muito bem e também podia mandar chuva a seus netos, quando eles precisassem. Para os Ayoreo, a palavra tem poder, e este mito só deve ser contado nos períodos de seca, para convocar a chuva. Cada mito desempenha um papel importante, de acordo com o clima e com a situação em que vive a comunidade. Por isso o mito da Abuela Grillo não pode ser narrado em épocas de chuva e inundações.

Baseados no livro e no argumento da Avó Grilo realizaram-se um teatro de bonecos, uma peça teatral para crianças e um curta- metragem de animação, realizado no contexto de um projeto boliviano-dinamarquês encabeçado pela produtora Nicobis.

concept
concept

O vídeo, que mantém o nome de Abuela Grillo e está baseado no livro de mitologia, tem o objetivo de mostrar o valor que a água tem em nossas vidas. No roteiro, o tema da água foi atualizado, com a incorporação de um fato histórico da Bolívia, a Guerra da Água (la Guerra del Água), que ocorreu em Cochabamba no ano 20 entre os povoadores e uma empresa francesa que era responsável pela administração da água e que decidiu elevar os preços, impedindo o acesso da população a esse líquido vital.

No vídeo se adicionaram outros personagens, que exploram a Abuela Grillo financeiramente. Quando canta, ela é a principal fonte de água. Eles venderão o líquido à população cobrando preços absurdos e inacessíveis.

A Avó Grilo, quando se dá conta de que não só estão usando e abusando dela, como também comercializando a água, se rebela com tanta força que faz com que irrompam tormentas que põem fim à situação. Volta o equilíbrio, o consumo de água é um direito do ser humano, e ninguém pode precificar este elemento vital para a vida.

O processo, dentro das peças de comunicação que a Abuela Grillo gerou, é muito singular, pois começou com um relato oral dos Ayoreo, passando a um livro, logo a um teatro de bonecos, uma peça teatral e então a uma animação. Diferentes formatos e suportes, mas uma só intenção: dar valor à água enquanto bem comum. E que isso fique claro aos meninos, meninas, adolescentes e jovens.

O vídeo não tem diálogos e dispõe do excepcional aporte do canto de Luzmila Carpio, sublime cantora e compositora indígena, que alcança uma grande trilha sonora, trabalhada com instrumentos musicais andinos. Essa característica permitiu que o vídeo fosse exibido em muitos países, transpondo a barreira do idioma e chegando às crianças, adolescentes e jovens das mais diversas culturas e, sobretudo, chegando a sensibilizar e iniciar o debate sobre a importância da água. A experiência dos diversos caminhos que recorreu a Avó Grilo nos convoca a reestabelecer certa ordem e equilíbrio mediante o conhecimento mais organizado. Se os pontos centrais de nossos problemas têm raízes na falta de uma relação coerente entre meio ambiente, audiovisual e infância, quais são as pontes que devemos construir entre eles?

Os temas sobre meio ambiente deverão ser tratados de modo aberto e sincero, baseados na profunda relação com o ser humano e o futuro, desligados do poder e à serviço de uma educação que esteja além dos recintos escolares.

O audiovisual comprometido com essas propostas estará coordenado com as novas formas de educação, informação, formação e entretenimento de novos cidadãos que tenham a capacidade de responder a este momento crucial. Não será apenas um audiovisual divertido, será profundamente recreativo.

A construção de uma infância sólida e crítica acontecerá, com o apoio da família, da escola, dos meios audiovisuais e de todos coordenados com um discurso e uma prática coerente e comprometida com os princípios da vida.

A Avó Grilo e os mil seres mitológicos deste continente fecundo estão à nossa frente, temos um grande material que espera as mãos, a cabeça e o coração dos comunicadores para saltar e curar as feridas de nosso presente e verdadeiramente construir um futuro do viver bem.

Sobre a Liliana de La quintana
http://www.festivalkolibri.org
Comunicadora, consultora, produtora audiovisual, roteirista, organizadora de festivais e de mostras de vídeos, além de escritora premiada de literatura infantil, Liliana trabalha há 31 anos na produção para o público infantil, com documentários sobre povos indígenas e sobre gênero, animações e vídeos de ficção. Escreveu 33 livros para crianças, entre eles: La abuela grillo. Mito ayoreo, los hijos del sol. Mito inca, Soy jalqa e Soy aymara. É fundadora e diretora do Festival Internacional de Audiovisual para la Niñez y Adolescencia Kolibrí.

Para ver a publicação do comKids Green 2012 na íntegra, clique aqui.
O comKids Green 2012 foi realizado com o apoio do Sesc e do Goethe-Institut.

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