Crianças no audiovisual e os novos caminhos da linguagem

Crianças e adolescentes começam a produzir audiovisual cada vez mais cedo em canais de youtube, aplicativos de celular e redes sociais, e a maioria aprende fazendo. São parte de uma geração que já nasceu nesse contexto e que aprendeu a brincar com o toque de telas e grandes repertórios de imagens. E se já criam, roteirizam, editam e montam seus próprios vídeos de forma espontânea e experimental, como o fazer audiovisual se converte em forma de expressão ativa e crítica e abre novos caminhos de linguagem?

Vejamos o que nos conta a professora Bete Bullara (Cineduc-RJ), da Rede Kino – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual.

Nós vivemos em uma sociedade que se expressa por múltiplas linguagens. Às vezes, em uma mesma tela de computador ou app temos mensagens de texto (e esta também é visual, já que a diagramação e a fonte escolhida têm peso semântico), fala, música, ruídos, desenhos e fotografias fixos ou em movimento etc. Por isso é cada vez mais importante que todos, inclusive as crianças e jovens, se apropriem dessas linguagens todas, para garantir melhor leitura e entendimento do que está sendo dito, ou mesmo não dito, subliminar. Mas desvendar o fazer, ou seja, saber como usar a técnica, não garante uma leitura com pleno entendimento ou uma expressão criativa” (B. Bullara, depoimento ao comKids)

Bete reforça a necessidade de se apropriar adequadamente da linguagem audiovisual. “É necessário, como fazemos já há muito tempo com os textos escritos, o aprendizado e o estímulo à concentração da atenção ao que se vê ou ouve, bem como a troca de ideias sobre a obra”.

Bete Bullara em oficina de fotografia artesanal para estudantes. Cred. Zeca Ribeiro. Imagem extraída de Revista Trip ( https://revistatrip.uol.com.br/trip/cineamazonia-itinerante-leva-filmes-a-comunidades-da-amazonia )

Educação Midiática

A produtora e pesquisadora Jacqueline Sánchez-Carrero endossa a importância da reflexão sobre o fazer audiovisual. Jacqueline é responsável, ao lado de Enrique Martinez, pela iniciativa espanhola que promove oficinas de produção audiovisual para crianças entre 8 e 12 anos. Com mais de 20 anos de experiência na direção do Taller Telekids, Jacqueline Sánchez-Carrero defende que processos de formação dirigidos para o fazer audiovisual podem contribuir com reflexões sobre princípios éticos e criativos sobre o que se produz e o que se consome em mídia. A produtora e educadora espanhola atesta:

Primeiro, saber como usar uma câmera não significa que o que está sendo registrado foi pensado, leve uma mensagem positiva e tenha um uso adequado dos diversos fatores confluem na produção audiovisual. As crianças devem aprender a linguagem visual principalmente por duas razões: para aprender a ser prosumidores (produção e consumo), dando prioridade a mensagens positivas, uma vez elas chegarão aos seus pares em outras partes do mundo; e, segundo, para que iniciem seu percurso como espectadores críticos, que sejam exigentes com o que oferecem os meios de comunicação e para que saibam selecionar sua própria dieta midiática” (J. S. Carrero, depoimento ao comKids)

Olhar o mundo sob outros pontos de vista é um dos trunfos da prática do audiovisual entre crianças e adolescentes. Vejamos o que Jacqueline nos conta a respeito disso:

Ao trabalhar como criador por trás das câmeras, você aprende muitas estratégias sobre como se aproximar do espectador, como lidar com a linguagem audiovisual para transmitir uma ideia ou determinada mensagem. Então, você se coloca no papel de espectador, mas já com uma outra maneira de pensar. No entanto, o fato da experiência contribuir para a formação de um espectador crítico não significa que não há necessidade de educação midiática. Formar-se como espectador é parte de um processo. Exige refletir sobre quem é o autor das mensagens dos meios de comunicação, quais estratégias utiliza para atrair minha atenção, descobrir as mensagens que nos querem transmitir, e até mesmo conhecer os nossos direitos como espectador, entre outras questões.” (J. S. Carrero, depoimento ao comKids)

Jacqueline Sánchez-Carrero, divulgação.

 

Novos olhares

A produtora e atriz Daniela Gracindo, idealizadora do Festival Internacional Pequeno Cineasta, conta que o interesse pelo evento cresceu ao longo dos anos, com aumento da procura, do número de crianças, adolescentes e de países participantes, além do avanço da apropriação da linguagem audiovisual e da diversidade de temas. O festival realizou este ano a sua sétima edição, com inscrições de filmes dos mais variados gêneros, dirigidos por crianças e jovens de 8 a 17 anos. Por crianças e não só para crianças. Segundo Daniela, nesta última edição houve uma série de trabalhos com olhar crítico ao uso da tecnologia, internet e redes sociais.

Daniela, também ministra a Oficina Pequeno Cineasta de qualificação de alunos na área cinematográfica.

Nestes quase 10 anos de Pequeno Cineasta, pude acompanhar de perto a potência que o cinema pode trazer para a formação desde a infância. Tenho notado em meus alunos que quando eles se apropriam da linguagem cinematográfica, ganham uma vontade de se expressar e se aprofundar em suas descobertas. Seus olhares se abrem para um mundo diverso, rico e sem fronteiras. Animados pelas infinitas possibilidades que o cinema traz, o jovem se sente estimulado a trocar experiências” (D. Gracindo, depoimento ao comKids).

Daniela Gracindo. Créditos: Marta Azevedo e Carla Domingues.

A roteirista e escritora Ana Dantas aposta no potencial da linguagem audiovisual. Ana publicou este ano o livro “A adoção de Júlia”, dirigido ao público infantil, a partir de 9 anos de idade. Na história, o tema da adoção de crianças por casais homoafetivos é contado com elementos da narrativa audiovisual para demonstrar noções de roteiro. Ana Dantas diz que orientações sobre roteiro podem ajudar no planejamento da criação de história e na compreensão do papel do roteirista.

Primeiramente, apesar de já produzirem, elas precisam saber que no mercado do audiovisual existe um profissional que cria e escreve para o cinema e TV, que é o roteirista. Muitos desconhecem.” (Ana Dantas, depoimento ao comKids)

Entre dilemas éticos, superexposição e novas formas narrativas, são muito os impactos possíveis diante desse maior acesso ao fazer audiovisual entre crianças e adolescentes. Isso estimula atividades sobre a importância do cinema como contribuição à formação educativa.

Acredito que o maior impacto está na possibilidade de ruptura com preconceitos, sejam eles de que tipo for, desde os comportamentais até os estéticos. Para isso não basta o visionamento conjunto, mas também a existência de um mediador sensível, perceptivo e, sobretudo, que também esteja o máximo possível liberto de preconceitos” (B. Bullara, Cineduc-RJ, Rede Kino, depoimento ao comKids) 

Já Daniela Gracindo, do Festival Pequeno Cineasta, chama atenção para o audiovisual como forma de expressão, para a construção de subjetividades.

“O processo de realização traz a oportunidade do jovem descobrir como suas ideias podem ser traduzidas em um filme. Este processo é tão rico de descobertas que acaba por estabelecer o interesse por novas ideias e reflexões. Assim, o jovem parte na busca pelo conhecimento orientado por sua imaginação aliada a suas próprias potencialidades. Com a facilidade de acesso a conteúdos e ferramentas para realização de suas criações, esta geração está pronta para contribuir com seus diversos olhares sobre o mundo.” (D. Gracindo, depoimento ao comKids)

Jacqueline, do Taller Telekids, também acredita em maior diversidade das formas narrativas, criadas por crianças e adolescentes que passam por um processo de formação. O impacto na sociedade, segundo ela, será a “evidência da necessidade de uma educação midiática na escola”. Os efeitos, para Jacqueline, seriam crianças mais exigentes em relação aos meios de comunicação e o uso do audiovisual como nova forma de expressão entre os pequenos.

Formação audiovisual

No Brasil, muitas iniciativas culturais já se dedicam à educação midiática com foco no audiovisual. O projeto Tela Brasil, idealizado por Laís Bodansky e Luiz Bolognesi, atua nessa área desde 1996, quando os dois cineastas começaram a exibir filmes brasileiros em praças e escolas de São Paulo no Cine Mambembe. Mais tarde o projeto passou a viajar para todo o país. Em 2007, passou a levar cineastas-educadores por vários estados brasileiros em oficinas itinerantes de vídeo.

Outra iniciativa é do Midiativa (Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes), responsável pelo selo comKids, que oferece oficinas e atividades educativas e culturais centradas na experimentação do audiovisual, na educação do olhar e na formação crítica de espectadores. Esse trabalho educativo está a cargo de Daniel Leite e Paula Tedrus, sob a coordenação de Beth Carmona, que realizam atividades lúdicas com audiovisual e crianças em São Paulo desde 2009.

Em várias cidades brasileiras, o Projeto Escola no Cinema, coordenado por Patrícia Durães Eliane Monteiro, oferece formação continuada para educadores e alunos. Criado em 1985 no Rio de Janeiro, com sede em São Paulo desde 1993, o projeto busca integrar áreas do conhecimento e linguagens artísticas com exibições de filmes, promoção de cursos, oficinas e debates. Outra atividade especialmente voltada a educadores é o Clube do Professor, realizado todos os sábados em oito cidades do país. Ambos os projetos são realizados nos cinemas da rede Espaço Itaú de Cinema Cinespaço.

Por fim, outra profissional que desenvolve um trabalho nesse sentido é a professora Cláudia Mogadouro (ECA/USP), que também propõe a correlação de valores, temas e abordagens entre Cinema e Educação. Formadora audiovisual de professores, Claudia é criadora e coordenadora do Grupo Cinema Paradiso, e ministra cursos de cinema e práticas educativas.

Com certeza outras iniciativas mais poderiam estar incluídas em meio a essas reflexões. Fica então nosso convite aos interessados em manifestar suas impressões no espaço de comentários.

Imagem do destaque: Daniela Gracindo e crianças em oficina Pequeno Cineasta no RJ. Divulgação.

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