Escuta infantil: processo sem receitas e com infinitas possibilidades
Escuta infantil é um processo sem receitas, como mostra a publicação “Escuta e observação de crianças: processos inspiradores para educadores“, organizada por Adriana Friedmann, especialista e consultora em infância.
A publicação, disponível online, é resultado de um curso ministrado por Friedmann no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo, e partiu de um processo coletivo de experiências de 14 alunas pesquisadoras, de vários segmentos da educação e das artes. Os registros de vivências de escuta e observação de crianças, em contextos e dilemas dos mais diversos, foram orientados por Friedmann, doutora em Antropologia, mestre em Educação e pedagoga, coordenadora do NEPSID (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento) e do Mapa da Infância Brasileira .
A educadora e antropóloga conversou com o comKids sobre a publicação e as experiências desse processo. Para Friedmann, ética e respeito são princípios dos espaços de escuta de crianças, com linguagens e tempos próprios. Inspiração é o que não falta para criar seus próprios processos.
comKids – Na publicação “Escuta e observação de crianças: processos inspiradores para educadores”, cada pesquisador apresenta uma experiência de escuta infantil nas mais diversas áreas, o que abre a perspectiva de construção desse processo em amplas dimensões. A diversidade de experiências mostra que não há fórmula única; tudo são descobertas. Que fio conecta essas experiências?
Adriana Friedmann – A riqueza que esta diversidade de olhares vem contribuir está, justamente, no fato de não haver um único caminho, metodologia ou ‘receita’ para os processos de escuta e observação de crianças. Alguns princípios no que diz respeito à atitude e postura do pesquisador, à ética e respeito com relação às crianças e alguns conceitos básicos, no que se refere às infâncias, são alguns dos fios que conectam estas pesquisas. Assim, considerar as crianças como atores sociais e autores das suas próprias vidas; compreender que elas se expressam através de linguagens próprias – corporais, plásticas, gestuais, simbólicas, lúdicas, verbais, entre outras – e que cada criança tem uma singularidade e potência únicas; descobrir as influências da multiculturalidade da qual cada criança está impregnada e enriquecida; compreender que a criança tem suas vontades, seus interesses e necessidades assim como o direito de ser respeitada nos seus tempos e processos próprios; a importância do observador silenciar, se aquietar e se conectar com cada criança e com sua própria interioridade, sentimentos e emoções para realizar que o que ele vê ou percebe na criança faz também parte do seu interior, da sua pessoa. Estes, dentre outros vários princípios, foram os que fui levando para os pesquisadores, que foram aprendendo a incorporar no decorrer dos processos de observação. Sobretudo, uma das maiores riquezas destes processos foi o compartilhamento das experiências no grupo e os olhares sensíveis de cada uma das participantes para os processos das parceiras e para a diversidade de contextos, situações, atitudes das crianças observadas.
comKids – Novos paradigmas do reconhecimento da infância apontam para a valorização da criança como sujeito de direito, protagonista de contextos sociais, e reconhecida pela singularidade de seu universo simbólico. Nesse contexto, os processos de escuta infantil vêm sendo mais estimulados? Ou ainda são muito subestimados?
Adriana Friedmann – Começa-se de forma ainda tímida a compreender a importância destas escutas: em escolas, junto a urbanistas, arquitetos, psicólogos, educadores não formais e até em algumas famílias, dentre outros grupos. Não são processos simples e muito menos superficiais. Requerem profunda reflexão, aprofundamento e muita prática. Não acredito que estes processos possam vir a ser levados adiante sem orientação e com muito cuidado e respeito pelo universo infantil. Estamos ‘engatinhando’ nesta caminhada, mas já com faíscas de consciência da importância que tem desenvolver estas escutas sensíveis com as crianças contemporâneas, seus cuidadores, educadores, famílias e responsáveis por garantir seus direitos e infâncias mais saudáveis.
comKids – Muito se fala em processos de escuta infantil, mas nem sempre são genuínos, de abordagem ética e respeitosa, os espaços de expressão favorecidos à criança. Você menciona no livro o risco do “modismo”. O que enriquece, de forma autêntica, o processo de escuta infantil?
Adriana Friedmann – O que enriqueceria esses processos, na minha opinião, é, antes de mais nada, uma tomada de consciência e um profundo compromisso por parte dos adultos em verdadeiramente escutar, se conectar, aceitar, acolher, respeitar cada criança! São processos complexos que implicam em um autoconhecimento e profundo trabalho de cada pesquisador consigo mesmo. Muita introspecção, registro, diálogo e estudo. E se desapegar de pré-julgamentos, não querer ensinar, intervir, corrigir, mudar ou ficar enchendo a criança com perguntas. Aprender – ou re-aprender – as linguagens infantis e adentrar – com a licença delas – seus universos. Estes processos são trabalhosos, levam tempo e muita dedicação. Mas acredito ser um caminho sem volta. O risco dos modismos é iminente já que é uma temática muito ‘sedutora’ e convidativa, mas nada simples.
comKids – Desnaturalizar e ressignificar práticas a partir do olhar das crianças é um desafio constante para pesquisadores, educadores e produtores culturais que lidam com a infância e seus saberes. A perspectiva antropológica pode contribuir nesse processo? Como a observação do cotidiano se difere da observação mais atenta de pesquisa?
Adriana Friedmann – Não duvido que os estudos da antropologia em diálogo com outras ciências como a psicologia, a educação, a filosofia, dentre outras – já que nenhuma sozinha é capaz de dar conta da complexidade que é entender o ser humano – já estão contribuindo com o repensar e readequar propostas, programas e atividades voltados para as crianças nas mais diversas áreas, espaços e instituições.
Porém, observar o dia a dia de uma criança é diferente da postura de um pesquisador que precisa se deter, refletir, aprofundar, estudar, ou seja, ir fundo e compreender as entrelinhas e as brechas – sobretudo tudo o que é manifestado pelo não verbal, pelo inconsciente ou de forma simbólica – pelas crianças. E o grande desafio é acreditar, confiar que a criança tem recursos próprios e um universo interior do qual, nós adultos, temos tanto a aprender.