Por que produzimos para crianças?

“(…) a infância é devir; sem pacto, sem falta, sem fim, sem captura; ela é desequilíbrio; busca; novos territórios; nomadismo; encontro; multiplicidade em processo, diferença, experiência. Diferença não numérica, diferença em si mesma; diferença livre de pressupostos. Vida experimentada; expressão de vida; vida em movimento; vida em experiência.”

Entre os muito encontros produtivos promovidos durante o ComKids – Prix Jeunesse Iberoamericano 2013, talvez o mais instigante tenha ocorrido com o filósofo argentino Walter Kohan, que convidou a plateia de produtores, diretores, editores, animadores, entre outros profissionais dedicados à produção cultural para crianças, a inaugurar um ciclo de perguntas sobre seu próprio fazer e concepções de infância.

Numa fala mansa, o professor titular da Filosofia da Educação da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) começou questionando o lugar onde a infância é colocada pelo mundo adulto – um vir a ser, um tempo meramente cronológico e de passagem. Ou uma “caixinha” onde depositamos tudo de melhor e bem intencionado que produzimos.

Lembrou que, quando iniciou um trabalho de filosofia com crianças nas escolas, imaginava poder fazer filosofia para crianças para que elas pudessem pensar o que não pensavam. Foi então entendendo que não seria a filosofia que educaria a infância, mas que a infância educaria a própria filosofia. Filosofar, logo avisou, é se surpreender com o mundo assim como fazem as crianças.

Para falar de filosofia, resgatou a própria infância do pensamento filosófico, que nasceu na Grécia antiga, com Sócrates, que dizia que uma vida sem perguntas não merecia ser vivida.

Pensar a infância exige pensar o tempo, explica Kohan. Para os gregos da Antiguidade, três palavras diferentes indicavam o tempo ou a ideia de temporalidade: Cronos, Kairós e Aión.

Cronos, definido como o “número do movimento segundo o antes e o depois”, é a medida do tempo, um tempo irrecuperável. Segundo Cronos, o tempo é passado e futuro. Ninguém pode parar Cronos, o tempo das previsões e dos calendários. Já Kairós é o tempo enquanto oportunidade. Os movimentos em Kairós não são qualitativamente iguais. Se em Cronos os segundos são os mesmos, um minuto pode ser bem diferente do outro em Kairós.

A terceira dimensão do tempo é Aión, que é o tempo da experiência, do acontecimento, do pensamento, da contemplação. É o tempo experimentado e não o que se passa exatamente. Aión é também o tempo do brincar de uma criança. “Aión é uma criança que brinca, seu reino é o de uma criança”, segundo Heráclito.

Enquanto os adultos governam em Cronos, as crianças reinam em Aión. Quando uma criança brinca, ela não está instalada em Cronos. Matamos a brincadeira quando a delimitamos nos ponteiros de um relógio. Quem brinca de verdade respeita o tempo da brincadeira, que é diferente do tempo da agenda ou do compromisso.

Então o que é a infância em relação ao tempo? Regidas por Cronos, as crianças crescem acompanhando calendários e têm seus cotidianos encaixados em agendas estressadas. A produção cultural para a infância é também dividida em faixas etárias (filmes indicados para quem tem entre 7 e 11 anos, por exemplo). É uma vida pensada em etapas.

Kohan, no entanto, nos convida a adentrar a infância pela porta de Aión. Assim, a infância não é apenas questão de idade; é condição de experiência. “Se a infância não é só uma experiência cronológica, mas uma experiência aiôica, estar dentro ou fora da infância não tem a ver com quantos anos se tem. Basta sair às ruas e ver que muitas crianças não têm experiência de infância e também que há muitas experiências de infância fora da idade cronológica das crianças”, exemplifica o professor de filosofia.

Seguindo a lógica do pensar filosófico, Kohan voltou a perguntar à plateia:
“Por que levamos o pensamento ou a arte para a infância?”.
“Para que elas, as crianças, se desenvolvam”, respondeu alguém.
“Mas, se são elas que vão desenvolver, porque temos que levar isso pra elas?”, voltou a perguntar o professor.
“É para provocar mais perguntas, gerar curiosidade”, outra pessoa acrescentou. “E as crianças já não são tão cheias de perguntas”, o filósofo insistiu.
“Acho que na verdade levamos as respostas para elas”, outra pessoa arriscou.

“Sabemos de verdade algo sobre a infância?”, insistiu nas questões o professor de filosofia, relembrando o que tinha explicado sobre a filosofia – quanto mais mergulhamos na filosofia menos sabemos, já que tudo aquilo que sabíamos é transformado em perguntas. Ao acompanhar o pensamento de Kohan, fomos caminhando por uma estrada mais cheia de questionamentos e com bem menos afirmações. Parecia um caminho mais honesto e seguro para trilhar as rotas da infância.

Terminamos com mais perguntas, várias, sobre a infância, a produção de conteúdos para a infância, o lugar da infância, entre outras questões provocativas. Eu me lembro bem de uma delas, que reproduzo do modo mais fiel que consigo aqui: “Onde fica o ponto de ônibus para pegar o avião certo que nos levará até o tempo de Aión?”.

(Ainda bem que não era obrigatório acertar as respostas…)

Gabriela Romeu

http://www.projetoinfancias.com.br

Gabriela Romeu é jornalista e documentarista. É uma das idealizadoras do projeto Infâncias (www.projetoinfancias.com.br), que está documentando a vida de crianças em diferentes lugares do país. Neste espaço, são publicados registros e vivências do projeto, além de outras reflexões sobre as infâncias.

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